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- “Carta a meus filhos sobre os
fuzilamentos de Goya”
de Jorge de Sena
Não sei, meus filhos, que mundo será
o vosso.
É possível, porque tudo é possível,
que ele seja
aquele que eu desejo por vós. Um
simples mundo,
onde tudo seja apenas a dificuldade que
advém
de nada haver que não seja simples e
natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio,
o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o
respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem
sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é
possível,
ainda quando lutemos, como devemos
lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a
justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a
humanidade
não tem conta o número dos que
pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele
tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados,
espancados,
e entregues hipocritamente à secular
justiça,
para que os liquidasse com suma piedade
e sem efusão de sangue.
Por serem fiéis a um deus, a um
pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito
apenas
à fome irrespondível que lhes roía
as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados,
gaseados,
e os seus corpos amontoados tão
anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas
não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça,
outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou
não tinham consciência
de haver cometido. Mas também
aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de
prevalecer
aniquilando mansamente, delicadamente
por ínvios caminhos quais se diz que
são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo,
este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em
Espanha
há mais de um século e que por
violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor
chamado Goya,
que tinha um coração muito grande,
cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus
filhos.
Apenas um episódio, um episódio
breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou
sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum
sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada
nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de
tê-la.
É isto que mais importa – essa
alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de
falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma
vez
alguém está menos vivo ou sofre ou
morre
para que um só de vós resista um
pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem
ambição,
e sobretudo sem desapego ou
indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz
vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de
tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por
momentos
e uma amargura me submerge
inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que
o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem
restitui
não só a vida, mas tudo o que lhe foi
tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode
dar-lhes
aquele instante que não viveram,
aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como
coisa
que não é só nossa, que nos é
cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória dos sangue que nos corre
nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor
que
outros não amaram porque lho roubaram.
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