quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

(...) “É uma declaração de guerra aberta contra o governo de Tsipras [e as decisões democráticas da população grega - acrescentaria]: ou renuncia à sua política ou os bancos gregos vão à falência. O BCE opta por uma estratégia de caos (...)” - Por Michel Husson








(Divulgação)




Grécia: começou o braço-de-ferro


Interesses poderosos não aceitam a vitória eleitoral do Syriza e adotam a tática do caos: querem dizer à Europa que negociar não é possível. Por Michel Husson, A l'encontre





A tarefa mais urgente e mais determinante é construir, em toda a Europa, a resistência às pressões que a Grécia sofre. Foto Left.gr



O Banco Central Europeu (BCE) acaba de tomar uma decisão de uma brutalidade inaudita: a partir de 11 de fevereiro, não aceitará os títulos públicos gregos como contrapartida à liquidez concedida aos bancos gregos1. É uma declaração de guerra aberta contra o governo de Tsipras: ou renuncia à sua política ou os bancos gregos vão à falência. O BCE opta por uma estratégia de caos, cujas consequências são absolutamente imprevisíveis.

Super Mário: o fim das ilusões

A nomeação de Mario Draghi à frente do BCE foi, em si mesmo, uma provocação. É preciso recordar que a entrada da Grécia na zona do euro, em 2001, foi possível graças à maquilhagem das suas contas, realizada sob a supervisão do banco Goldman Sachs. Este tinha aconselhado o governo grego, que utilizara produtos derivados a fim de reduzir a amplitude do seu défice orçamental. Mais tarde, a fraude foi reconhecida e as contas, corrigidas. Mas Mario Draghi atuou como vice-presidente do Goldman Sachs para Europa de 2002 a 2005 e, por isso, é difícil acreditar que ele não estivesse ciente dessas manipulações, nem dos 300 milhões de dólares que haviam reportado a seu banco. Depois de suceder a Jean-Paul Trichet na chefia do BCE, este último, diante de uma pergunta de um jornalista sobre o passado de Draghi no Goldman Sachs, respondeu com um silêncio sonoro e revelador2.

“Tudo o que for necessário para salvar o euro”: com essa fórmula proferida num discurso no último dia 26 de julho, Draghi fez acreditar que, sob o seu mandato, o Banco Central Europeu fosse implementar uma política mais acomodável. O anúncio posterior de uma Quantitative Easing à europeia, ou seja, compras massivas de títulos públicos no mercado secundário, teve dois efeitos. Indicando aos mercados financeiros que os seus ataques especulativos seriam sistematicamente anulados, permitiu desinflar um pouco as taxas de juros concedidas aos países em dificuldades; e estabelecendo distância do dogma merkeliano, dava a impressão de que a zona do euro dava um pequeno passo em direção a uma gestão mais solidária em relação às dívidas soberanas. O anúncio do plano de investimento por Juncker parecia confirmar essa impressão de que a política europeia estava a começar a reorientar-se. Ilusões que já foram dissipadas, por exemplo, por Pierre Khalfa3, que apontou os limites do “Super Mário” e as enganosas aparências do plano Juncker.

Mas a decisão do BCE foi o fim da brincadeira e redescobrimos que os princípios da austeridade europeia não variaram uma polegada. O primeiro princípio é que as dívidas devem ser pagas. No caso grego, a sua consequência é particularmente clara. Em 2012, a dívida grega teve um corte (haircut); isto é, foi reestruturada. Mas tal reestruturação era bem mais modesta, dado que, segundo as próprias estatísticas da Comissão Europeia, a dívida grega passou de 356 mil milhões de euros no final de 2011 para 305 mil milhões no final de 2012 – isso quer dizer uma redução efetiva de 51 mil milhões (14% do total). Na realidade, foi sobretudo uma reestruturação dos créditos dos bancos privados que, mediante uma modesta redução, se viram livres desses créditos duvidosos e que foram assumidos, na sua grande maioria, pelas instituições europeias. Instituições para as quais aquele era o último esforço a fim de aliviar a carga da dívida. Mas, sempre segundo dados oficiais, no final de 2014 a dívida grega representava 175,4% do PIB. E o objetivo que se impõe à Grécia é reduzi-la a 120%, ou seja, uma redução desmedida e impossível de se alcançar sem dizimar o povo grego.

O segundo princípio é o da condicionalidade, que está omnipresente tanto no Quantitative Easing de Draghi como no plano Juncker: todas as ajudas monetárias ou financeiras estão sujeitas à aplicação das famosas “reformas estruturais”, em consonância com o mandato da troika. Para compreender quão detalhados e brutais podiam ser os enviados da troika nas suas prescrições, basta consultar os seus documentos oficiais (por exemplo, o balanço do programa de ajuste grego4 redigido pela Comissão Europeia em abril de 2014).

Qual renegociação da dívida grega?

O ritmo dos acontecimentos acelera e a decisão unilateral do BCE é uma resposta à tática do novo governo grego. O ministro das finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, é um economista heterodoxo brilhante e um crítico original da financeirização que joga um papel central na aspiração dos excedentes (e dos lucros) pelos Estados Unidos, o que ele chama de “O Minotauro planetário”. Mas é também autor, com Stuart Holland e James Galbraith, de uma "modesta proposta para superar a crise do euro”5, uma variante – hábil – da ideia de euro-obrigações que permitam mutualizar as dívidas soberanas (à altura do umbral fatídico dos 60% do PIB de cada país) e reciclar os fundos assim obtidos para financiar um programa europeu de investimentos, via Banco Europeu de Investimentos. Tratava-se, efetivamente, de uma proposta modesta, levando em conta a amplitude dos desequilíbrios estruturais da zona do euro, e apoiando-se na vontade de tornar compatíveis esses novos dispositivos com regras do jogo europeias.

Alguns dias antes da sua nomeação como ministro, fixava o objetivo de “destruir os fundamentos do sistema oligárquico”6 e este ponto é essencial, por duas razões: o aumento da dívida grega antes da crise é indissociável das punições realizadas por essa oligarquia e, efetivamente, o desenvolvimento da Grécia não é possível sem destruir esse sistema. Aí se apresentam “reformas estruturais” necessárias, mas não são, de forma alguma, as mesmas em que pensa a Comissão Europeia pensa.

Agora, a questão imediata é a da dívida. A posição do novo governo desenhou-se muito rapidamente: afirmação da vontade de negociar, mas lembrando o princípio amplamente compartilhado no Syriza, de “nenhum sacrifício para o euro”, e a rejeição de negociar com a troika. Logo vieram as propostas, cujas linhas gerais foram expostas por Varoufakis7. São moderadas ou razoáveis, e consistem em troca da dívida (swap) pela criação dos novos tipos de títulos. Os primeiros substituiriam as ajudas europeias outorgadas em 2012 no marco do mecanismo europeu de estabilidade (MEE) e seriam indexadas ao crescimento. Os segundos seriam obrigações perpétuas que substituiriam os títulos gregos atualmente nas mãos do Banco Central Europeu.

Varoufakis anunciou em seguida que havia escolhido o banco Lazard para aconselhá-lo na negociação. É o mesmo banco que interveio na reestruturação de 2012. O seu vice-presidente para a Europa é Mathieu Pigasse, banqueiro “de esquerda” que, por outro lado, dirige a Inrockuptibles – uma revista progressista – e controla, com Pierre Bergé e Xavier Niel, o Le Monde e o L'Obs.

Aliviar a dívida, em vez de anulá-la

Pigasse detalhou as suas propostas numa entrevista à France Inter8. Consistem em dividir a dívida por dois, em mãos dos credores públicos, o que resulta numa redução de cerca de 100 mil milhões de euros de um total de 320 mil milhões. Isso permitiria à Grécia alcançar o objetivo de um rácio dívida/PIB de 120% a um custo menor. Isto é, não se trata de uma anulação da dívida, mas de um “alívio” ou de uma “diluição”, para retomar os termos de Pigasse. Assim se explica a ideia de indexar os títulos ao crescimento: “Vou pagá-los enquanto o meu crescimento superar um determinado índice”. Esse primeiro dispositivo atuaria sobre 75 mil milhões de euros. Quanto aos títulos perpétuos, implicam juros, mas podem não ser devolvidos, ou sê-lo num prazo muito longo: 100 ou 150 anos, segundo Pigasse. Isso afetaria os 25 mil milhões de euros restantes.

Essas propostas são uma primeira base de discussão que foi imediatamente alvo de uma demonstração de hostilidade, e conduziu o BCE a tomar a sua decisão, que pode comparar-se a um golpe de Estado financeiro. No entanto, o anúncio dessas propostas tinha tranquilizado os banqueiros gregos, cujas ações haviam recuperado um pouco do terreno perdido. Com um comportamento ambíguo, o BCE fez um segundo anúncio, o de uma ajuda aos bancos gregos de 60 mil milhões de euros, concedida no marco de um procedimento de urgência batizado de ELA (Emergency Liquidity Assurance). A mensagem é, portanto, muito clara: “Os bancos antes do povo”. Essa operação ilustra a vontade, bastante política, de desestabilizar o governo grego, privando-o de qualquer alívio que lhe permita avançar na implementação de seu programa. Varoufakis disse precisar de seis meses: o BCE nega-os.

As coordenadas de uma situação complexa

Agora é preciso avaliar as propostas do governo grego, começando por descartar as cifras extravagantes que circularam. Em França, explicaram-nos que eliminar a dívida grega custaria em média entre 650 e 731 euros a cada contribuinte. Na realidade, o que se deixaria de ganhar não seriam mais do que 10,5 euros por adulto residente na França, conforme estabelece com grande clareza um artigo do La Tribune9.

Em todo caso, o que se pode hoje conhecer do plano de alívio é limitado na sua amplitude e está submetido a grandes incertezas. De facto, não afeta mais do que um terço da dívida total e esta continuaria representando 120% do PIB, o que continua a ser considerável. Ao mesmo tempo, é preciso observar que a carga de reembolsos seria reduzida. Este ponto é importante porque a Grécia, diferente da França, por exemplo, não pode “fazer a reciclagem” da sua dívida – dito de outra forma, endividar-se para cobrir os seus reembolsos, pois já não tem acesso (ou teria só a juros extravagantes) aos mercados financeiros.

Portanto, a questão é saber o que ocorreria com o pagamento dos juros. O impacto depende do que concretamente for negociado, em caso de haver uma negociação. Por exemplo, a indexação sobre o crescimento pode querer dizer que a Grécia não pagaria juros, ou que pagaria menos, enquanto não tiver recuperado uma certa taxa de crescimento? Mas qual seria o ponto de crescimento a partir do qual se desencadeariam os pagamentos de juros? Quanto aos títulos perpétuos, eles têm a vantagem de dispensar reembolsos mas, além de representarem apenas 25 mil milhões de euros, também é preciso perguntar qual seria o nível do juro aplicado. A experiência histórica mostra que as “dívidas perpétuas” foram, em geral, acompanhadas de juros mais elevados.

Podemos então repreender o governo grego por não ter feito subir suficientemente os lances, declarando de forma unilateral uma moratória total da dívida (reembolso e juros) para estabelecer uma melhor correlação de forças inicial? É evidentemente possível, de modo abstrato, mas evitaremos aqui adotar uma posição de força sem dúvida muito mais fácil quando afinal não somos senão um observador a distância.

O balanço daquilo que não passa de um primeiro round não é tão mau. O posicionamento do governo grego baseou-se numa mistura, em princípio bem dosada, de firmeza sobre as orientações e de abertura a uma negociação “razoável”. Isso bastou para fazer o BCE sair do bosque e revelar – como se fosse necessário – a sua verdadeira natureza ao serviço dos interesses da finança. E, sobretudo, o governo ganhou legitimidade: na própria Grécia mesmo, mostrando que faz frente às pressões da finança, mas também no conjunto da Europa, onde o apoio à experiência capitaneada pelo Syriza tem agora um objetivo preciso, o de afrouxar as rédeas do BCE sobre a Grécia.

Também é preciso compreender que o governo grego luta em duas frentes: contra o peso da dívida e, portanto, contra o rigor das instituições europeias; e contra a oligarquia. Sem dúvida, este segundo combate é o mais decisivo para, além das medidas de urgência, colocar a Grécia no caminho de um modelo de desenvolvimento mais estável e, por conseguinte, mais igualitário. No entanto, os ritmos não são os mesmos: a dívida é um tema urgente, mas o combate antioligárquico implica implementar as (boas) reformas estruturais, e isso levará mais tempo. A estratégia consiste em acertar temporariamente a questão da dívida, o que pode permitir reorientar mais rapidamente a ação política sobre a situação interna.

Alguns, como Frédéric Lordon10, pensam que o Syriza não tem mais do que duas opções: ou “passa debaixo da mesa” (dito de outra forma, rende-se), ou se “coloca de pernas para o ar”, saindo do euro. Evidentemente, tendo em conta a furiosa vontade das instituições europeias de fazer a experiência grega fracassar, não se pode desconsiderar uma saída do euro. Mas uma desvalorização não constituiria em si mesmo uma baforada de oxigénio suficiente para reabsorver os desequilíbrios estruturais da economia grega, e não permitiria tampouco proteger-se das medidas de represália.

A Grécia vive um desses períodos nos quais a história se acelera, nos quais as correlações de forças se modificam rapidamente. O seu governo e o seu povo estão diante de interesses poderosos, que não aceitam a vitória eleitoral do Syriza, a vitória de um “voto insurrecional”, segundo o Financial Times. O apoio à experiência levada a cabo na Grécia não pode e não deve ser incondicional: seria o pior dos serviços que lhes poderíamos prestar. Esse apoio deve basear-se numa análise mais detalhada possível da evolução da situação, com sugestões e críticas. Mas a tarefa mais urgente e mais determinante é construir, em toda a Europa, a resistência às pressões que a Grécia sofre, e romper com o seu isolamento. Um recente chamamento lançado pelos principais dirigentes sindicais alemães11 afirma que a Grécia não é uma ameaça, mas sim uma oportunidade para a Europa; outro chamamento internacional de economistas e de universitários manda uma mensagem similar aos governos e às instituições europeias:12 é esse tipo de apoio de que a Grécia precisa, e de forma inédita. O futuro do povo grego é decidido hoje na Grécia.


Publicado em A L'Encontre e Viento Sur. Traduzido pela Carta Maior.

Adaptado para Portugal por Luis Leiria para o Esquerda.net


1Eligibility of Greek bonds used as collateral, Press Release, 4/02/2015 http://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2015/html/pr150204.en.html

2Trichet reste muet sur les liens entre Draghi et Goldman Sachs, Arte, septiembre 2012. http://pinguet.free.fr/triche.htm

3Pierre Khalfa, "Super Mario au secours de l'économie européenne ?", Mediapart, 11/09/2014
http://blogs.mediapart.fr/blog/pierre-khalfa/110914/super-mario-au-secou... "Les faux semblants du plan Juncker", Mediapart, 3/12/2014.

4 Commission européenne, The Second Economic Adjustment Programme for Greece. Fourth Review, Abril 2014.

5 Yanis Varoufakis et Stuart Holland, Une modeste proposition pour surmonter la crise de l'euro, Octubre 2011.

6 Yanis Varoufakis, "We are going to destroy the Greek oligarchy system", Channel 4, 23/01/2015.

7 "Greece finance minister reveals plan to end debt stand-off" , Financial Times, 2/02/2015.

8 Mathieu Pigasse sobre a dívida grega, France Inter, 3/02/2015. http://gesd.free.fr/pigasse115.htm

9 "Ce que coûterait vraiment aux contribuables l'annulation de la dette grecque", Ivan Best, La Tribune, 5/02/2015.

10 Michel Husson, "Lordon ou le syllogisme de la défaite", A l'encontre, 21/01/2015.

11 Griechenland nach der Wahl ? Keine Gefahr, sondern eine Chance für Europa, febrero 2015.

12 Nous sommes avec la Grèce et l'Europe, Février 2015. http://blogs.mediapart.fr/edition/q...




(os destaques a vermelho são da minha responsabilidade)



- A partir de: esquerda.net





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