(divulgação)
O direito a sonhar
Votar Não significa votar sim a um estado para quem a defesa e a política internacional passam por fingir que não fazem parte da Europa. Fingir que vivemos numa espécie de isolamento glorioso com os nossos “amigos” Estados Unidos. Artigo de Jo Clifford.
10 de Setembro, 2014 - 16:32h
Jo Clifford.
Lembro-me, e ainda belisco o braço quando me lembro, de que, quando eu era ainda uma criança, tínhamos uma grafonola de manivela. Lembro-me de dar à manivela, de pôr um disco de 78 rotações no prato, de levantar o braço da agulha, de ouvir o som desconcertado e distorcido que de lá saía. Da última vez que a minha filha cá veio, instalou o Spotify no meu telemóvel…
Isso é uma espécie de medida de quão depressa os nossos tempos mudam. Essa viagem extraordinária, uma viagem que se deu, surpreendentemente, na minha vida: da pilha de discos cheios de pó, guardados em capas de cartão a desfazer-se, até à música do mundo inteiro. No meu telemóvel.
Sei que estou a envelhecer, e sei que isto é confrangedoramente óbvio, mas o mundo está a mudar.
Quando comecei a ganhar a vida como escritora, escrevia as peças numa máquina de escrever. Costumava, literalmente, “colar e copiar”: cortava bocados dos diálogos com uma tesoura e colava-os no sítio em que ficavam melhor.
E se precisasse de informação sobre uma coisa qualquer, ia procurá-la à biblioteca. Porque não havia internet. E se quisesse enviar uma carta, punha-a num envelope, punha um selo no envelope, e deitava-a numa caixa de correio. Porque não havia outra maneira de enviar uma carta…
E naqueles dias do antigamente, em que eu ouvia a canção “Tea for two” na grafonola de manivela, não havia nada que pudesse fazer com o sentimento intenso e assustador de que eu não era um rapaz, ainda que tivesse um nome de rapaz e um corpo de rapaz.
Não havia nada que eu pudesse fazer com esse sentimento a não ser tentar reprimi-lo.
Mas agora posso viver abertamente como uma mulher, e ser protegida legalmente na minha necessidade de o fazer, e a mudança na nossa consciência coletiva que permitiu que isso acontecesse parece-me ainda mais miraculosa.
Mas mudanças há muitas neste mundo, e nada lhes é imune, muito menos o Ato de União entre a Escócia e a Inglaterra de 1707, e fingir que é imutável é completamente absurdo.
Parece que é preciso repetir isto: as mudanças acontecem e uma das coisas que temos de fazer enquanto seres humanos é enfrentarmos a mudança, acomodarmo-la e até agradecer que tenha acontecido, e tentar garantir que se reflete adequadamente nos nossos compromissos políticos, sociais e económicos.
Tentar continuar a viver como antes seria tão absurdo como se eu tentasse ouvir música no autocarro com a minha grafonola de manivela. Ou como se eu continuasse a viver, cheia de medo, no armário.
Não tenhamos ilusões, a mudança é assustadora. Todos nos lembramos do medo de ir para uma escola nova, um emprego novo, uma relação nova.
Tenho uma fortíssima, ainda que em certa medida especializada, memória do medo: do tempo em que sabia que não conseguia continuar a viver como homem. O terror de viver como mulher. De apanhar o autocarro. De comprar leite na loja da esquina. De me encontrar com a família, com os amigos, com os colegas de trabalho.
A tentação nessas alturas é de nos ficarmos pelas já familiares formas de sofrimento, porque sabemos que, de uma maneira ou de outra, aprendemos a lidar com elas. Aprendemos a ficar no emprego que detestamos, na escola que sentimos que já ultrapassámos, ou com a pessoa que já não conseguimos amar. Ou a estar sozinhos.
Isto aplica-se a nível coletivo, ou a nível nacional, tanto quanto a cada um de nós individualmente. A mudança é, absolutamente, uma parte inescapável da vida, mas é também uma coisa assustadora e há sempre a tentação de tentar fingir que não está a acontecer, que não precisa de acontecer, ou que, se não olharmos, vai desaparecer.
E nesse medo reside poder. Um poder que é fácil de usar, uma tentação a que os políticos sem visão acham difícil de resistir.
A maior parte dos políticos do não nem sequer tentou.
Continuo pasmada pela falta de argumentos positivos que demostram.
No momento em que escrevo isto, o infeliz do Nick Clegg está a tentar tornar a campanha do não numa coisa positiva; a tentar fazer com que votar não no referendo seja uma coisa inspiradora. Não é fácil imaginar como conseguirá isso.
Porque votar Não significa aceitar ser governados por um estado cujas políticas económicas estão devotadas aos interesses financeiros da City de Londres — uma minoria dentro da minoria para quem o enriquecimento é feito à custa do empobrecimento de toda a gente.
Votar Não significa votar sim a um estado para quem a defesa e a política internacional passam por fingir que não fazem parte da Europa. Fingir que vivemos numa espécie de isolamento glorioso com os nossos “amigos” Estados Unidos. Significa negarmos que somos o estado cliente dessa potência em declínio. Fingirmos que ainda somos capazes de dar passos maiores do que as pernas. Fingirmos que ainda somos uma potência imperial e que precisamos de nos defender com meios de intimidação nucleares absolutamente inúteis.
Votar Não significa votar sim a um estado cujas políticas sociais não conseguiram nada senão aumentar uma já desastrosa combinação de desigualdade e injustiça.
Votar Não significa votar sim a um sistema eleitoral maioritário claramente datado e injusto, e uma monarquia hereditária datada e grotescamente cara.
Mas o resto de nós está a dar-se muito mal com isto. E, com o passar dos anos, a dar-se cada vez pior. Porque é sobejamente claro que, a tantos níveis, o sistema atual de governo britânico não é adequado à crise que enfrentamos.
O que quer dizer que votar Não é votar não à mudança e votar Sim, em contrapartida, a um desastrado e prolongado suicídio coletivo.
E é tão triste ver que a resistência a este sinistro ato de auto-destruição já não vem do Labour, que se perdeu no caminho, abandonou os seus valores, traiu os seus princípios e não nos pode oferecer mais nada a não ser uma espécie de versão leve e injusta do Conservadorismo inglês.
Mas há mais do que política partidária em causa. Como já foi dito muitas vezes e precisa de ser repetido: o problema não é saber se apoiamos ou não Alex Salmond e o SNP, mas sim saber se aceitamos o direito e o dever da Escócia de gerir a sua vida. E se aceitamos, o que é que isso implica?
Podemos começar — mas não acabar — com as políticas que esse partido propõe. Pelo menos têm princípios e políticas sãs e de energias sustentáveis. Reconhecem o direito ao ensino superior gratuito. Reconhecem o direito aos serviços de saúde gratuitos. Recusam a posse de armas nucleares. Reconhecem as nossas ligações à Europa continental. Têm um comportamento humano e saudável em relação à imigração. Estão empenhadas na justiça e igualdade para pessoas como eu, que pertencem a minorias historicamente perseguidas. Compreendem a importância das artes e de um governo que as proteja.
Isto é tudo muito bem vindo e de louvar no contexto da ideologia injusta e auto-destrutiva do consenso em Westminster.
E está tanta coisa a acontecer na Escócia neste momento. É o que já está a fazer da Escócia um país diferente da Inglaterra. Com ou sem referendo.
Mas isto não é a coisa mais importante em que estaremos a votar.
O que importa para a maior parte de nós, talvez, é que estaremos a votar pelo direito de imaginar um presente melhor e um futuro melhor para nós e para os nossos filhos. O direito de imaginar um país que não foi construído sobre as mais vis e egoístas noções de humanidade, mas sobre qualquer coisa mais nobre e mais autêntica: no nosso desejo coletivo de justiça, decência e igualdade básica. O direito de imaginar um país de que temos orgulho de fazer parte, em vez de um país de que temos vergonha. Estaremos, em suma, a votar pelo direito a sonhar.
E é depois disso haverá muito que fazer…
Jo Clifford é dramaturga, atriz e professora.
Publicado inicialmente na antologia Inspired by Independence, editada pelo National Collective, publicado por World Power Books. Traduzido por Mariana Vieira.
Isso é uma espécie de medida de quão depressa os nossos tempos mudam. Essa viagem extraordinária, uma viagem que se deu, surpreendentemente, na minha vida: da pilha de discos cheios de pó, guardados em capas de cartão a desfazer-se, até à música do mundo inteiro. No meu telemóvel.
Sei que estou a envelhecer, e sei que isto é confrangedoramente óbvio, mas o mundo está a mudar.
Quando comecei a ganhar a vida como escritora, escrevia as peças numa máquina de escrever. Costumava, literalmente, “colar e copiar”: cortava bocados dos diálogos com uma tesoura e colava-os no sítio em que ficavam melhor.
E se precisasse de informação sobre uma coisa qualquer, ia procurá-la à biblioteca. Porque não havia internet. E se quisesse enviar uma carta, punha-a num envelope, punha um selo no envelope, e deitava-a numa caixa de correio. Porque não havia outra maneira de enviar uma carta…
E naqueles dias do antigamente, em que eu ouvia a canção “Tea for two” na grafonola de manivela, não havia nada que pudesse fazer com o sentimento intenso e assustador de que eu não era um rapaz, ainda que tivesse um nome de rapaz e um corpo de rapaz.
Não havia nada que eu pudesse fazer com esse sentimento a não ser tentar reprimi-lo.
Mas agora posso viver abertamente como uma mulher, e ser protegida legalmente na minha necessidade de o fazer, e a mudança na nossa consciência coletiva que permitiu que isso acontecesse parece-me ainda mais miraculosa.
Mas mudanças há muitas neste mundo, e nada lhes é imune, muito menos o Ato de União entre a Escócia e a Inglaterra de 1707, e fingir que é imutável é completamente absurdo.
Parece que é preciso repetir isto: as mudanças acontecem e uma das coisas que temos de fazer enquanto seres humanos é enfrentarmos a mudança, acomodarmo-la e até agradecer que tenha acontecido, e tentar garantir que se reflete adequadamente nos nossos compromissos políticos, sociais e económicos.
Tentar continuar a viver como antes seria tão absurdo como se eu tentasse ouvir música no autocarro com a minha grafonola de manivela. Ou como se eu continuasse a viver, cheia de medo, no armário.
Não tenhamos ilusões, a mudança é assustadora. Todos nos lembramos do medo de ir para uma escola nova, um emprego novo, uma relação nova.
Tenho uma fortíssima, ainda que em certa medida especializada, memória do medo: do tempo em que sabia que não conseguia continuar a viver como homem. O terror de viver como mulher. De apanhar o autocarro. De comprar leite na loja da esquina. De me encontrar com a família, com os amigos, com os colegas de trabalho.
A tentação nessas alturas é de nos ficarmos pelas já familiares formas de sofrimento, porque sabemos que, de uma maneira ou de outra, aprendemos a lidar com elas. Aprendemos a ficar no emprego que detestamos, na escola que sentimos que já ultrapassámos, ou com a pessoa que já não conseguimos amar. Ou a estar sozinhos.
Isto aplica-se a nível coletivo, ou a nível nacional, tanto quanto a cada um de nós individualmente. A mudança é, absolutamente, uma parte inescapável da vida, mas é também uma coisa assustadora e há sempre a tentação de tentar fingir que não está a acontecer, que não precisa de acontecer, ou que, se não olharmos, vai desaparecer.
E nesse medo reside poder. Um poder que é fácil de usar, uma tentação a que os políticos sem visão acham difícil de resistir.
A maior parte dos políticos do não nem sequer tentou.
Continuo pasmada pela falta de argumentos positivos que demostram.
No momento em que escrevo isto, o infeliz do Nick Clegg está a tentar tornar a campanha do não numa coisa positiva; a tentar fazer com que votar não no referendo seja uma coisa inspiradora. Não é fácil imaginar como conseguirá isso.
Porque votar Não significa aceitar ser governados por um estado cujas políticas económicas estão devotadas aos interesses financeiros da City de Londres — uma minoria dentro da minoria para quem o enriquecimento é feito à custa do empobrecimento de toda a gente.
Votar Não significa votar sim a um estado para quem a defesa e a política internacional passam por fingir que não fazem parte da Europa. Fingir que vivemos numa espécie de isolamento glorioso com os nossos “amigos” Estados Unidos. Significa negarmos que somos o estado cliente dessa potência em declínio. Fingirmos que ainda somos capazes de dar passos maiores do que as pernas. Fingirmos que ainda somos uma potência imperial e que precisamos de nos defender com meios de intimidação nucleares absolutamente inúteis.
Votar Não significa votar sim a um estado cujas políticas sociais não conseguiram nada senão aumentar uma já desastrosa combinação de desigualdade e injustiça.
Votar Não significa votar sim a um sistema eleitoral maioritário claramente datado e injusto, e uma monarquia hereditária datada e grotescamente cara.
"Como já foi dito muitas vezes e precisa de ser repetido: o problema não é saber se apoiamos ou não Alex Salmond e o SNP, mas sim saber se aceitamos o direito e o dever da Escócia de gerir a sua vida. E se aceitamos, o que é que isso implica?É difícil apresentar argumentos positivos para isto. E o establishment de Westminster nem nos quer a pensar nisso porque, desconfio, põe em causa um sistema em que se estão todos a dar muito bem. E isso explica muita coisa se pensarmos na dificuldade que parecem ter em fazer reformas.
Mas o resto de nós está a dar-se muito mal com isto. E, com o passar dos anos, a dar-se cada vez pior. Porque é sobejamente claro que, a tantos níveis, o sistema atual de governo britânico não é adequado à crise que enfrentamos.
O que quer dizer que votar Não é votar não à mudança e votar Sim, em contrapartida, a um desastrado e prolongado suicídio coletivo.
E é tão triste ver que a resistência a este sinistro ato de auto-destruição já não vem do Labour, que se perdeu no caminho, abandonou os seus valores, traiu os seus princípios e não nos pode oferecer mais nada a não ser uma espécie de versão leve e injusta do Conservadorismo inglês.
Mas há mais do que política partidária em causa. Como já foi dito muitas vezes e precisa de ser repetido: o problema não é saber se apoiamos ou não Alex Salmond e o SNP, mas sim saber se aceitamos o direito e o dever da Escócia de gerir a sua vida. E se aceitamos, o que é que isso implica?
Podemos começar — mas não acabar — com as políticas que esse partido propõe. Pelo menos têm princípios e políticas sãs e de energias sustentáveis. Reconhecem o direito ao ensino superior gratuito. Reconhecem o direito aos serviços de saúde gratuitos. Recusam a posse de armas nucleares. Reconhecem as nossas ligações à Europa continental. Têm um comportamento humano e saudável em relação à imigração. Estão empenhadas na justiça e igualdade para pessoas como eu, que pertencem a minorias historicamente perseguidas. Compreendem a importância das artes e de um governo que as proteja.
Isto é tudo muito bem vindo e de louvar no contexto da ideologia injusta e auto-destrutiva do consenso em Westminster.
E está tanta coisa a acontecer na Escócia neste momento. É o que já está a fazer da Escócia um país diferente da Inglaterra. Com ou sem referendo.
Mas isto não é a coisa mais importante em que estaremos a votar.
O que importa para a maior parte de nós, talvez, é que estaremos a votar pelo direito de imaginar um presente melhor e um futuro melhor para nós e para os nossos filhos. O direito de imaginar um país que não foi construído sobre as mais vis e egoístas noções de humanidade, mas sobre qualquer coisa mais nobre e mais autêntica: no nosso desejo coletivo de justiça, decência e igualdade básica. O direito de imaginar um país de que temos orgulho de fazer parte, em vez de um país de que temos vergonha. Estaremos, em suma, a votar pelo direito a sonhar.
E é depois disso haverá muito que fazer…
Jo Clifford é dramaturga, atriz e professora.
Publicado inicialmente na antologia Inspired by Independence, editada pelo National Collective, publicado por World Power Books. Traduzido por Mariana Vieira.
- A partir de: esquerda.net
Sem comentários:
Enviar um comentário