terça-feira, 17 de setembro de 2013
De Hiroshima à Síria: o inimigo cujo nome não queremos dizer
11/9/2013, [*] John Pilger – johnpilger blog
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Na Grã-Bretanha, o golpe das imagens falsas e de falsas identidades políticas deu menos certo. Lá, parece, começa algum movimento de consciência. Mas que se apressem. Os juízes de Nuremberg foram bem claros: “Qualquer cidadão tem o direito de violar leis domésticas para impedir crimes contra a humanidade e contra a paz”. Toda a honra ao povo da Síria e a incontáveis outros. Os norte-americanos temos muito a aprender com eles.
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Na parede de meu escritório tenho emoldurada a primeira página do jornal Daily Express do dia 5/9/1945 e a manchete: “Escrevo, como um alerta ao mundo”.
Era a primeira linha da matéria de Wilfred Burchett sobre Hiroshima, a primeira que se leu no ocidente, escrita em Hiroshima, 30 dias depois do ataque norte-americano. Foi o furo jornalístico do século.
Por causa dessa sua longa, perigosa viagem, que desafiou as autoridades da ocupação norte-americana, Burchett foi massacrado, sobretudo por outros jornalistas “incorporados” às tropas norte-americanas. A matéria denunciava que os EUA haviam cometido um ato de assassinato premeditado em massa, em escala gigantesca e iniciado uma nova era de terror.
Hoje, praticamente todos os dias, Burchett tem sua revanche. A criminalidade intrínseca do uso de armas de destruição em massa, que os EUA inauguraram, está todos os dias aí, ao alcance de todos os olhos, nos Arquivos Nacionais dos EUA e em décadas de militarismo camuflado como democracia. O psicodrama em que os EUA vivem mergulhados em tudo que tenha a ver com a Síria exemplifica tudo isso. Mais uma vez, o povo dos EUA foi capturado e é refém de uma ameaça terrorista ainda negada até pelos mais progressistas críticos das políticas dos EUA para o mundo.
A terrível verdade jamais mencionada nos EUA é que o mais perigoso inimigo da humanidade vive “do lado de cá” do Oceano Atlântico.
A farsa de John Kerry e as piruetas de Barack Obama são temporárias. O acordo de paz que a Rússia construiu para as armas químicas da Síria logo, e não demora, começará a ser tratado nos EUA com o desprezo que os militaristas dedicam à diplomacia. Agora, com os EUA já aliados à Al-Qaeda, e os golpistas armados pelos EUA já bem instalados no governo do Cairo, os EUA passam a dedicar-se a tentar esmagar os dois últimos estados independentes que restam no Oriente Médio: primeiro a Síria, depois o Irã.
“Essa operação [na Síria]”, disse o ex-ministro de Relações Exteriores da França Roland Dumas, em junho, “é antiga. Começou há muito tempo. Foi preparada, preconcebida e planejada”. Vídeo a seguir (em francês com legendas em inglês):
Num momento em que a opinião pública está “psicologicamente apavorada”, como disse Jonathan Rugman, do Channel 4, tentando explicar a absoluta rejeição, na população britânica, a um ataque militar contra a Síria, é absolutamente urgente e necessário repor, para a discussão pública, o “inimigo cujo nome não se pronuncia” nos EUA.
Não importa quem tenha usado armas químicas nos subúrbios de Damasco. São os EUA – não a Síria – os mais frequentes usuários dessas armas terríveis. Em 1970, o Senador Gaylord Nelson relatou ao Senado que:
Os EUA lançaram sobre o Vietnã uma quantidade produtos químicos tóxicos (dioxina) que correspondeu a 2,73kg [orig. 6 pounds] por cabeça, contra a população.
Foi a “Operação Hades” [Inferno], cujo nome adiante foi trocado para Operação Ranch Hand [Operação “Mão rancheira”], conforme a campanha de publicidade, que apresentava o uso de agentes químicos desfolhantes, o “agente laranja”, lançado de aviões sobre o Vietnã, como ajuda aos agricultores vietnamitas que estariam enfrentando pragas nas lavouras]; essa é a origem do que muitos médicos no Vietnã e em todo o mundo chamam de “um ciclo de catástrofe fetal”. Eu mesmo vi muitas crianças deformadas. John Kerry, com seu currículo de guerra encharcado de sangue também viu e deve lembrar.
Também vi crianças deformadas no Iraque, onde os EUA usaram armas de urânio baixo-enriquecido e de fósforo branco, como fizeram os israelenses em Gaza, que fizeram chover armas químicas de destruição em massa sobre escolas e hospitais da ONU. Nesses casos, não houve “linha vermelha” de Obama. Nem shows televisionados de piedade pelas vítimas.
O debate repetitivo sobre se “nós” devemos “agir” contra ditadores cuidadosamente selecionados é parte também da lavagem cerebral a que os norte-americanos somos submetidos. Richard Falk, professor emérito de Direito Internacional e Relator Especial da ONU para a Palestina, descreve o processo como:
(...) modo autocomplacente, arrogante, de selecionar só imagens positivas e morais para divulgar valores ocidentais e inocência, e assim validar uma campanha de irrestrita violência política.
E é campanha tão ampla que:
(...) resulta virtualmente indesmentível.
E a mentira maior de todas é a dos “liberais realistas” na política anglo-norte-americana, de “especialistas” acadêmicos e da mídia, que se ordenam, eles mesmos, gerentes da crise mundial, quando, na verdade, são a causa dela. Os EUA estudam outros povos como se não fossem parte da mesma humanidade; se não servem aos desígnios da potência ocidental, são “estados falhados”, “estados-bandidos” ou “estados do mal” carentes de “intervenção humanitária”.
Um ataque contra a Síria ou contra o Irã ou contra qualquer dos “demônios” que os EUA criam para o mundo se resumiria a variante “da moda”, da tal “Responsabilidade de Proteger”, cujo garoto-propaganda é o ex-ministro australiano de Relações Exteriores, Gareth Evans, co-presidente de um “Centro Global” (Global Centre) que tem sede em New York. Evans e seus bem remunerados lobbyists têm papel crucial na propaganda para arrastar a “comunidade internacional” a atacar países nos casos em que “o Conselho de Segurança rejeita alguma proposta ou não consegue lidar com a ameaça”.
Evans é conhecido. Aparece em meu filme Death of a Nation, de 1994, que desmascara a escala do genocídio no Timor Leste. O sorridente homem de Canberra lá está, erguendo a taça de champagne num brinde ao ministro indonésio, com dois sobrevoando o Timor Leste em avião australiano, depois de terem assinado o tratado para saquear petróleo e gás do país destroçado, onde Suharto, o tirano indonésio, matou a bala ou de fome um terço da população.
No governo de Obama, “o Fraco”, o militarismo cresceu talvez mais do que nunca antes. Sem que se veja um único tanque nos gramados da Casa Branca, houve um golpe militar em Washington. Em 2008, com seus devotos liberais secando as últimas lágrimas de “decepção”, Obama pôs-se sob o comando do Pentágono de George Bush: assumiu todas as suas guerras e seus crimes de guerra.
Com a Constituição já substituída por um estado policial emergente, os mesmos que destruíram o Iraque com choque e pavor, que pilharam e saquearam no Afeganistão e que reduziram a Líbia a um pesadelo hobbesiano, são hoje os senhores e mandam e desmandam no governo dos EUA. Hoje, nos EUA, morrem mais soldados por suicídio, que nos campos de batalha. Só no ano passado, 6.500 veteranos de guerra dos EUA suicidaram-se. E haja bandeiras!
O historiador Norman Pollack chama de “fascismo liberal”. “Esses, do passo-de-ganso” – Pollack escreveu, – substituíram qualquer militarização aparentemente menos inócua da cultura nos EUA. E para liderá-los, bombástico, temos hoje o reformador fracassado, aplicadamente dedicado a organizar assassinatos, um a um ou em massa, e sempre exibindo sorriso que, mais branco, impossível”.
Todas as 3ª-feiras [é hoje!], Obama supervisiona pessoalmente uma rede terrorista mundial de drones que esmagam gente “como insetos”, pelo mundo, os que acorram para socorrê-los, os que se aproximem para chorar os mortos e quem mais passe por ali.
Nas zonas de conforto do ocidente, o primeiro presidente negro eleito na terra da escravidão sente-se muito bem, como se só o fato de ele existir já fosse prova de progresso social e apesar das pegadas de sangue que se veem por onde ele pisa. O servilismo com que os norte-americanos curvaram-se ante o símbolo que acreditaram ver na extraordinária eleição de Obama destruiu o movimento antiguerra nos EUA.
Na Grã-Bretanha, o golpe das imagens falsas e de falsas identidades políticas deu menos certo. Lá, parece, começa algum movimento de consciência. Mas que se apressem. Os juízes de Nuremberg foram bem claros:
Qualquer cidadão tem o direito de violar leis domésticas para impedir crimes contra a humanidade e contra a paz.
Toda a honra ao povo da Síria e a incontáveis outros. Os norte-americanos temos muito a aprender com eles.
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[*] John Pilger - nasceu em Bondi na área metropolitana de Sydney, Austrália, 9 de outubro 1939. A carreira de Pilger como repórter começou em 1958; ao longo dos anos tornou-se famoso pelos artigos, livros e documentários que escreveu e/ou produziu. Apesar das tentativas de setores conservadores de desvalorizar Pilger, o seu jornalismo investigativo já mereceu vários galardões, tais como a atribuição, por duas vezes, do prêmio de Britain’s Journalist of the Year Awardna área dos dos Direitos Humanos. No Reino Unido é mais conhecido pelos seus documentários, particularmente os que foram rodados no Camboja e no Timor-Leste. Trabalhou ainda como correspondente de guerra em vários conflitos, como na Guerra do Vietnam, no Camboja, no Egito, na Índia, em Bangladesh e em Biafra. Atualmente reside em Londres.
- A partir de: redecastorphoto
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