sábado, 19 de outubro de 2013

Curiosidades (2) ...





(Divulgação)



As mentiras tóxicas do ocidente sobre a Síria

16/10/2013, [*] Finian Cunningham, Press TV, Irã
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu





Meninos que andam sobre os escombros de um edifício que os “rebeldes” disseram que foi bombardeado por forças leais ao presidente da Síria, Bashar al-Assad



Dizem que bom mentiroso tem de ter memória infalível, para conseguir manter as próprias mentiras. Ou, mais dia menos dia, o mentiroso acaba por cair na armadilha das próprias lorotas que contou antes.

Apenas poucas semanas depois do incidente com armas químicas mortais, dia 21/8, próximo a Damasco, a narrativa ocidental já está ruindo sob o peso das próprias mentiras.

Lembremos que aquele foi o incidente “horrendo” que por pouco não resultou em ataque mortífero pelo EUA e aliados, contra a Síria. “Os militares dos EUA não dão beliscões”, [1] – disse Obama, o sinistro, enquanto mandava navios de guerra dos EUA armados com centenas de mísseis Tomahawk Cruise para se reunirem e atacar a Síria.



Todos os discursos e falas “oficiais” no ocidente, segundo os quais o governo sírio estaria cometendo atrocidades contra civis, com gás sarin, sempre foram, desde o início, impressionantemente sem provas. Onde estão os nomes e as sepulturas das “mais de 1.400” pessoas que, segundo Washington, haviam sido mortas “com absoluta certeza” pelo exército sírio? E sobre as comunicações interceptadas que os EUA diziam ter, entre comandantes do exército sírio? Onde está a “inteligência conclusiva” de que falavam Washington, Londres e Paris, e que usaram para justificar ataques militares punitivos contra o governo soberano do presidente Bashar al-Assad?

A cada dia aumenta a quantidade de provas que DESMENTEM tudo que se disse no ocidente – e que a imprensa-empresa canina e incansavelmente repetiu; e que PROVAM que a verdade é, como sempre foi, absolutamente outra, uma narrativa diferente, muito mais convincente e muito perturbadora, a saber: que houve um massacre de grandes proporções em área próxima a Damasco, dia 21/8, e que envolveu inteligência ocidental e dos sauditas, mancomunada com grupos de mercenários anti-governo sírio apoiados do exterior. Civis, inclusive crianças, foram assassinados a sangue frio, provavelmente por injeção letal, para encenar uma provocação que serviria como pretexto para o ataque militar dos EUA contra a Síria.

Esse ataque de grandes proporções contra a Síria era cada dia mais necessário, à medida em que ia fracassando o objetivo de forçar mudança de regime, objetivo declarado do Eixo do Mal, a saber: de Washington, Londres, Paris, Riad, Doha, Telavive, Amã e Ancara.

Pois foi aí que os mentirosos deram-se mal. O presidente Obama, David Cameron da Grã Bretanha, o francês François Hollande e todos seus respectivos mais altos funcionários, entre os quais o secretário de Estado dos EUA, John Kerry e a embaixadora dos EUA à ONU, Samantha Power, todos repetiram incansavelmente o mesmo mantra,

Sabemos que o regime Assad cometeu aquele crime, porque os rebeldes sírios não têm capacidades para usar armas químicas.

Esse “argumento”, de que as gangues mercenárias apoiadas pelo ocidente na Síria não teriam tido acesso a armas químicas foi repetida e repetida, e amplificada e amplificada vezes sem conta, por toda a “grande empresa-imprensa” ocidental, jornais, rádios, televisões e noticiários em geral.

Evidentemente, observadores mais bem informados sabiam da mentira. Vários relatórios de especialistas confirmavam, há bastante tempo, que os grupos Takfiri e ligados à Al-Qaeda, como a Frente Al-Nusra, haviam sido apanhados na Síria e na Turquia, em diferentes ocasiões, antes, com suprimentos de gás sarin e de outros produtos tóxicos.

Mas vale a pena examinar melhor esse específico detalhe, porque o ocidente fez desse argumento (o argumento da “impossibilidade” de os mercenários fazerem usos de armas químicas) o ponto chave, para justificar sua pretendida ação militar contra a Síria.

E agora, o que se vê, são diplomatas ocidentais, alguns jornalistas e os inspetores oficiais da ONU, todos esses, a dizer que as gangues mercenárias apoiadas pelo ocidente sim, elas tiveram pelo acesso a munição tóxica proibida internacionalmente.

Essa revelação, que deveria aparecer como admissão de erro e confissão de culpa na primeira página de todos os jornais – “no mesmo espaço e com igual destaque” em relação às “denúncias” agora desmentidas – apareceu travestida no New York Times em notícia que, de fato, desviava a atenção dos leitores:

Aumenta a pressão sobre rebeldes [sic] sírios na 2ª-feira, para que permitam acesso aos arsenais de armas químicas em áreas sob controle deles – escreveu o jornal.

E o Times acrescentava;

Um diplomata ocidental no mundo árabe disse que, embora o governo sírio seja legalmente responsável pelo desmonte de seus arsenais químicos por um acordo internacional, a oposição também pode cooperar no processo, porque vários locais onde se armazenam armas químicas estão localizados em áreas em disputa ou dentro de território controlado pelos rebeldes.


A verdade parece ser muito diferente disso. Ahmet Üzümcü, diretor da Organização para Proibição de Armas Químicas, disse também essa semana que o governo sírio cooperou plena e completamente, no processo de garantir acesso dos inspetores a todos os arsenais sob seu controle. Mas Üzümcü disse também que o problema, agora, é que sua equipe de inspetores não está conseguindo chegar aos arsenais controlados pelas gangues mercenárias da oposição a Assad. E, isso, porque esses grupos abriram fogo contra os inspetores e chegaram a explodir bombas em áreas próximas aos hotéis onde os inspetores estão hospedados.

Apelamos para que todos apóiem essa missão e cooperem, para não tornar as coisas ainda mais difíceis – disse Üzümcü.

O ponto crucial é que líderes ocidentais e seus mais altos servidores, além de praticamente toda a imprensa-empresa ocidental, fiel obediente daqueles mesmos governos e servidores, foi apanhada em mais algumas de suas mentiras tóxicas sobre a Síria.

O New York Times e outros veículos da imprensa-empresa ocidental não parecem dar-se conta da risível contradição entre suas “notícias”: há apenas algumas semanas, os mercenários não saberiam usar armas químicas e, por essa “razão”, estaria “provado” que não tinham armas químicas... O que provaria que todas as armas químicas teriam de ter sido empregadas pelo governo sírio, o qual, por esse crime, esteve muito próximo de virar alvo de ataque militar levado a cabo pelos EUA.

Washington e seus aliados estiveram muito próximos de atacar massivamente a Síria, o que teria causado a morte de milhares de civis. Teria sido agressão criminosa, dado que, como já se sabe hoje, foi ideia erguida sobre uma montanha de mentiras. No centro da “invenção” de motivos para um ataque à Síria estava a mentira de que as gangues armadas e pagas pelo ocidente “não poderiam” ter cometido as atrocidades que se viram em Damasco, “porque não possuíam armas químicas”.

Agora, como se começa a ver pela informação correta que às vezes vaza – aos pingos! – nas páginas dos veículos da imprensa-empresa ocidental, já se sabe que, sim, sim, os mercenários tinham acesso às mais mortais armas químicas. E o chefe da equipe de inspetores da Organização para Proibição de Armas Químicas é obrigado a suplicar que as tais gangues cooperem, para que possa levar a cabo sua missão de desarmamento químico na Síria.

O jornalismo de propaganda ocidental está visivelmente com um problema de memória. E atrapalha-se pateticamente no seu próprio amontoado de mentiras. Seja como for, não podemos deixar que o mundo esqueça os crimes e mais crimes que os governos ocidentais sempre estão a um passo de cometer. Pelo menos, para impedi-los de montar imediatamente outra farsa equivalente à anterior.



[*] Finian Cunningham nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1963. Especialista em política internacional. Autor de artigos para várias publicações e comentarista de mídia. Recentemente foi expulso do Bahrain (em 6/2011) por seu jornalismo crítico no qual destacou as violações dos direitos humanos por parte do regime barahini apoiado pelo Ocidente. É pós-graduado com mestrado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico da Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir carreira no jornalismo. Também é músico e compositor. Por muitos anos, trabalhou como editor e articulista nos meios de comunicação tradicionais, incluindo os jornais Irish Times e The Independent. Atualmente está baseado na África Oriental, onde escreve um livro sobre o Bahrain e a Primavera Árabe. 



(Os sublinhados são da minha responsabilidade)



- A partir de:  redecastorphoto




sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Curiosidades (1) ...





- Independência da OPCW (e da IAEA) - Ou ...nem por isso?!! ...



(Divulgação)



O embaixador brasileiro demitido da Organização para a Proibição de Armas Químicas há 11 anos...



15/10/2013, Moon of Alabama, EUA


Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu




Sede da Organização para a Proibição de Armas Químicas em Haia
 
Em 2002, José Bustani, então diretor da hoje laureada com o Prêmio Nobel da Paz, Organização para a Proibição de Armas Químicas [orig. Organization for the Prohibition of Chemical Weapons, OPCW], foi demitido, porque insistia em que o Iraque fosse incorporado ao Tratado das Armas Químicas, o que atrapalhava os planos de guerra do governo Bush.


Ontem, o New York Times voltou àquela história: [1]



Mr. [John] Bolton, então subsecretário de Estado e ex-embaixador dos EUA à ONU, disse ao diretor Bustani que o governo Bush não estava satisfeito com seu estilo de administrar. 



Mas o diretor Bustani, 68, que fora reeleito por unanimidade apenas 11 meses antes, se recusou a mudar de atitude; semanas depois, dia 22/4/2002, foi demitido numa sessão especial da Organização para Proibição de Armas Químicas que reúne 145 países. 



A história por trás dessa demissão foi objeto de muita especulação e diferentes interpretações durante anos, e Bustani, diplomata brasileiro, tem mantido posição discreta desde então.



Esse último parágrafo (negrito/itálico) está errado. O New York Times apresenta o caso como reles “diz-que-disse”, e deixa acintosamente de lado a informação de que o caso foi julgado, que há sentença sobre a questão, e que a sentença é integralmente favorável ao diplomata brasileiro:
 
“Mr. Bolton insiste que Mr. Bustani foi demitido por incompetência. Em entrevista por telefone na 6ª-feira, o norte-americano confirmou que abordou diretamente o então diretor da Organização para Proibição de Armas Químicas: “Disse a ele que, se concordasse em demitir-se e sair voluntariamente, lhe garantiríamos saída honrosa e discreta” – disse Bolton.

Na versão de Mr. Bustani, a campanha contra ele começara no final de 2001, depois que Iraque e Líbia sinalizaram que desejavam assinar a Convenção das Armas Químicas, o tratado internacional cuja aplicação é supervisionada pela Organização para Proibição de Armas Químicas”. 

[...] 

“Discutimos muito, porque todos sabíamos que seria difícil” – disse Bustani, que é o atual embaixador do Brasil na França. Os planos para integrar o Iraque e a Líbia ao Tratado, que Bustani apresentara a vários países, “causaram fúria em Washington” – contou ele. Poucos dias depois, começaram os avisos (e ameaças) de diplomatas norte-americanos e outros. 

“No final de dezembro de 2001, já era bem evidente que os norte-americanos estavam decididos a livrar-se de mim” – disse Bustani. – “As pessoas diziam eles querem sua cabeça”.

As tais “interpretação” e “especulação” que o Times insiste em repetir e requentar já foram esclarecidas e decididas há muito tempo. Imediatamente depois de demitido por pressão dos EUA, Bustani recorreu à justiça, em ação que apresentou à Organização do Trabalho Internacional, que tem jurisdição sobre as organizações internacionais. O processo concluiu, em sentença perfeitamente clara, ao processo n. 2.232, que: [2] 

1. A DECISÃO TOMADA EM CONFERÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS DA OPCW DIA 22/4/2002 É NULA. 

2. A OPCW DEVE PAGAR AO RECLAMANTE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS, A SEREM CALCULADOS NOS TERMOS ADIANTE ESPECIFICADOS (...). 

3. A ORGANIZAÇÃO DEVE PAGAR AO RECLAMANTE, 50 MIL EUROS, PARA REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. 

4. A ORGAIZAÇÃO DEVE PAGAR AO RECLAMANTE 5 MIL EUROS, DE CUSTAS PROCESSUAIS.

A corte concluiu que a indevida influência política dos EUA levou à demissão ilegal do diretor Bustani, o que caracteriza demissão por interesses políticos, e agride o princípio da neutralidade de organizações internacionais como a Organização para a Proibição de Armas Químicas, OPCW. A organização foi condenada a indenizar o diretor ilegalmente demitido, por danos morais e pelos custos processuais, e a pagar-lhe todos os salários a que faria jus até 2005, quando terminaria o mandato para o qual fora eleito.

Pois... para o New York Times não aconteceram nem o processo nem a sentença! Não são referidos na matéria publicada. Para o Times, a questão continua a ser de “interpretação e especulação”, mesmo depois de já haver sentença que confirma que os fatos se passaram como narrados pelo diplomata brasileiro.

Apagar da informação a sentença de um tribunal internacional é o meio que o New York Times encontra ainda hoje para defender os neoconservadores do governo Bush, para os quais lei alguma tem qualquer valor; e cuja única obsessão é um projeto de hegemonia global.
 ___________________
Notas dos tradutores

[1] 13/10/2013, To Ousted Boss, Arms Watchdog Was Seen as an Obstacle in Iraq (Para o diretor demitido, a Organização para Proibição de Armas Químicas era vista como obstáculo no Iraque), NYTimes.  

[2] International Labour Organization, ILO, 16/7/2003, Judgment No. 2232; íntegra da sentença (em inglês).



- A partir de:  redecastorphoto




quinta-feira, 17 de outubro de 2013

19 de Outubro (2)






- Informação disponível no site da CGTP:




Ao contrário do que está a circular em alguma Comunicação Social, a Ponte 25 de Abril, sábado, está aberta e a funcionar para o trânsito circular. Apenas o acesso a Alcântara será encerrado devido à concentração a partir das 14 horas. Todos a Marchar por Abril; Todos a Alcântara. A CGTP-IN apela a todos que dêem divulgação a este esclarecimento.




















- Informações várias em:  CGTP





terça-feira, 8 de outubro de 2013

Crónica de 1 sequestro






Artigo de Evo Morales publicado no Le Monde Diplomatique de Agosto de 2013


(divulgação)



"Eu, sequestrado na Europa", por Evo Morales


Neste artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Evo Morales narra a sua viagem de Moscovo com destino à Bolívia, interrompida por ordem dos governos submissos aos EUA, entre os quais o português. Para o presidente boliviano, os governos do Velho Continente traíram os valores democráticos que inspiraram gerações.

Artigo | 4 Agosto, 2013 - 12:42 



Morales diz que os governos que não autorizaram a sua passagem "perderam até a capacidade de se reconhecer como colonizados". Foto Alain Bachellier/Flickr


 O último 2 de julho produziu um dos eventos mais insólitos da história do Direito Internacional: a interdição feita ao avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia de sobrevoar os territórios francês, espanhol, italiano e português, seguida de sequestro, no aeroporto de Viena (Áustria), por catorze horas.

Várias semanas depois, este atentado contra a vida de membros de uma delegação oficial, cometido pelos Estados considerados democráticos e respeitadores da lei, continua a provocar indignação ao mesmo tempo que abundam as condenações de cidadãos, de organizações sociais, de organismos internacionais e de governos por todo o mundo.


O que aconteceu?

Estava em Moscovo, alguns instantes antes do início de uma reunião com Vladimir Putin, quando um assistente me alertou de dificuldades técnicas: era impossível levar-nos até Portugal como estava previsto inicialmente. Mas assim que terminou o encontro com o presidente russo, já tinha ficado claro que o problema não tinha nada de técnico…

Desde La Paz, o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, David Choquehuaca, tratou de organizar uma escala em Las Palmas, na Espanha, e validar um novo plano de voo. Tudo parece em ordem… mas, agora que estamos no ar, o coronel de aviação Celiar Arispe, que comanda o grupo aéreo presidencial e pilotava o avião neste dia, vem ver-me: “Paris retirou nossa autorização de voo! Nós não podemos penetrar no espaço aéreo francês!”. A surpresa era tão grande quanto a sua inquietude: estávamos prestes a cruzar o sul da França.

Podíamos, é claro, tentar regressar à Rússia, mas corríamos o risco de ficar sem combustível. O coronel Arispe fez, então, contato com a torre de controle do aeroporto de Viena para solicitar uma autorização de aterragem de urgência. Que as autoridades austríacas sejam aqui agradecidas por nos dar sinal verde.

Instalado num pequeno escritório que me colocaram à disposição no aeroporto, conversava com meu vice-presidente, Alvaro Garcia Linera e com o ministro Choquehuanca, para decidir o que fazer na sequência e, sobretudo, tentar compreender as razões da decisão francesa, uma vez que o piloto me tinha informado que a Itália também tinha recusado o nosso pedido de entrada no seu espaço aéreo.

Neste momento, recebi a visita do embaixador da Espanha na Áustria, Alberto Carnero. Ele me comunicou que um novo plano de voo para me levar à Espanha havia sido aprovado. Explicou que era necessário fazer, antes de tudo, uma inspeção no avião presidencial. Tratava-se de uma condição sine qua non para a nossa partida em direção à Las Palmas, nas Grandes Canárias.

Quando pergunto sobre as razões de tal exigência, Carnero invocou o nome de Edward Snowden, empregado de uma empresa norte-americano que prestava serviços de espionagem a Washington. Respondi que só o conhecia pelo que era noticiado na imprensa. Lembrei igualmente, ao diplomata espanhol, que meu país respeitava as convenções internacionais: em nenhum caso eu estava tentando extraditar alguém para a Bolívia.

Carnero estava em contato permanente com o subsecretário dos assuntos estrangeiros espanhol, Rafael Mendívil Peydro, que lhe pedia, visivelmente, para insistir.

“Você não inspecionará este avião, tive que reforçar. Se você não acredita que no que eu digo, você está chamando o presidente do Estado soberano da Bolívia de mentiroso.” O diplomata retirou-se para se aconselhar com seu superior, antes de retornar. Pediu-me, então, que o convidasse a tomar um rápido café no avião. “Mas você acha que eu sou um delinquente?” — perguntei. “Se você tentar entrar neste avião será necessário que use a força. E eu não resistirei a uma operação militar ou policial, não tenho meios para tanto.”

Definitivamente assustado, o embaixador descartou a opção da força, não sem antes afirmar que, nestas condições, não poderia autorizar o plano de voo: “Às nove da manhã, indicaremos se vocês podem ou não partir. Por enquanto, vamos discutir com nossos amigos”, explicou. “Amigos?” “Mas que amigos da Espanha são esses que você se refere? A França e a Itália?” Ele recusou-se a responder e saiu…

Aproveitei o momento para discutir com a presidente argentina Cristina Fernández, uma excelente advogada que me aconselha nas questões jurídicas, e também com os presidentes venezuelano e equatoriano, Nicolás Maduro e Rafael Correa, ambos muito inquietos com o assunto.

O presidente Correa ligou várias vezes durante o dia, para saber as novidades. Esta solidariedade deu-me forças: “Evo, eles não têm nenhum direito de inspecionar o seu avião!”, repetiu. Eu não ignorava que um avião presidencial tem o mesmo estatuto de uma embaixada.

Mas estes conselhos e a chegada dos embaixadores da Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América (ALBA) [1] aumentou dez vezes a minha determinação de me mostrar firme. Não, nós não ofereceremos à Espanha ou à qualquer outro país – aos Estados Unidos, ainda menos que aos outros – a satisfação de inspecionar nosso avião. Nós defenderemos a nossa dignidade, a nossa soberania e a honra de nossa pátria, nossa grande pátria. Nós jamais aceitaremos esta chantagem.

O embaixador da Espanha reapareceu. Preocupado, inquieto e nervoso, disse que eu já disponha de todas as autorizações e que podíamos partir. Enfim, decolamos…

A interdição de sobrevoo, decretada de maneira simultânea por quatro países e coordenada pela CIA (Central Intelligence Agency) contra um país soberano, sob o único pretexto que nós talvez estivéssemos a transportar Snowden, atualiza o peso político da principal potência imperial: os Estados Unidos.

Até 2 de Julho (data do nosso sequestro), todos compreendiam que os Estados pudessem dotar-se de agências de segurança, afim de proteger seu território e população. Mas Washington ultrapassou os limites concebíveis. Violando todos os princípios da boa fé e as convenções internacionais, transformaram parte do continente europeu em território colonizado. Um insulto aos direitos do homem, uma das conquistas da Revolução Francesa.

O espírito colonial que conduziu a submissão de tantos países demonstra, mais uma vez, que o império não tolera nenhum limite – nem legal, nem moral, nem territorial. A partir de agora, está claro para o mundo inteiro que, por esta potência, todas as leis podem ser transgredidas, toda a soberania violada, todo o direito humano ignorado.

O poder dos Estados Unidos está claramente nas suas forças armadas, envolvidas em várias guerras de invasão apoiadas por um complexo militar-industrial fora do comum. As etapas das suas intervenções são bem conhecidas: após as conquistas militares, a imposição do livre comércio, de uma concepção singular de democracia, e, enfim, a submissão das populações à voracidade das multinacionais.

As marcas indeléveis do imperialismo – militares ou económicas – desconfiguraram o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria. Alguns destes países foram invadidos por serem suspeitos de portarem armas de destruição em massa ou de abrigar organizações terroristas. Em todos, milhares de seres humanos foram mortos, sem que a Corte Penal Internacional instituísse o mínimo julgamento.

Mas o poder norte-americano provém igualmente de dispositivos subterrâneos de propagação do medo, chantagem e intimidação. Algumas das receitas utilizadas por voluntários de Washington para manter o seu status: a “punição exemplar”, no mais puro estilo colonial que levou à repressão de índios Abya Yala. [2]

Esta prática agora recai sobre os povos que decidiram libertar-se, e sobre os dirigentes políticos que optaram por governar para os humildes. A memória desta política de punição exemplar ainda está viva na América Latina: pensemos nos golpes de Estado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002, contra o presidente hondurenho Manuel Zelaya em 2009, contra Correa em 2010, contra o presidente paraguaio Fernando Lugo em 2012 e, claro, contra nosso governo em 2008, sob a chefia do embaixador Americano na Bolívia, Philip Goldberg [3].

O “exemplo” para que os indígenas, os operários, os trabalhadores do campo, os movimentos sociais, não ousem levantar a cabeça contra as classes dominantes.

O “exemplo”, para curvar os que resistem e aterrorizar os outros. No entanto um “exemplo” que, a partir de agora, conduz os humildes do continente e do mundo inteiro a redobrar seus esforços de unidade para fortalecer suas lutas.

O atentado de que fomos vítimas revela as duas faces de uma mesma opressão contra a qual os povos decidiram se revoltar: o imperialismo e seu gémeo político e ideológico, o colonialismo. O sequestro de um avião presidencial e de seu equipamento – o que tínhamos direito de considerar impensável no século XXI – ilustra a sobrevivência de uma forma de racismo no seio de certos governos europeus. Para eles, os Índios e os processos democráticos ou revolucionários nos quais eles estão engajados representam obstáculos no caminho da civilização.

Este racismo se refugia agora na arrogância e nas explicações “técnicas” mais ridículas para maquilhar uma decisão política nascida num escritório de Washington. Aqui estão os governos que perderam até a capacidade de se reconhecer como colonizados e que tentam proteger a reputação de seu mestre.


Quem diz império, diz colónias

Tendo optado pela obediência às ordens que lhes foram dadas, certos países europeus confirmaram o seu estatuto de país submisso. A natureza colonial da relação entre os Estados Unidos e a Europa foi reforçada após os atentados do 11 de Setembro de 2001 e revelada a todos em 2004, quando tomamos conhecimento da existência de voos ilícitos de aviões militares norte-americanos, transportando supostos prisioneiros de guerra, para Guantánamo ou para prisões europeias.

Sabemos hoje que estes presumidos “terroristas” eram submetidos a tortura; uma realidade que mesmo as organizações de defesa dos direitos humanos silenciam frequentemente. A “Guerra contra o terrorismo” reduziu a velha Europa à classificação de colónia; um ato hostil, que podemos tratar como terrorismo de Estado, coloca a vida privada de milhões de cidadãos à disposição dos caprichos do império.

Mas a ofensa ao Direito Internacional que o nosso sequestro expressa pode constituir um ponto de ruptura. A Europa foi berço das mais nobres ideias: liberdade, igualdade, fraternidade. Ela contribuiu largamente para o progresso científico e à emergência da democracia. Ela não é mais que uma pálida figura de si mesma. Um neo-obscurantismo ameaça os povos de um continente, que séculos atrás, iluminava o mundo com suas ideias revolucionárias e suscitava a esperança.

Nosso sequestro poderia oferecer a todos os povos e governos da América Latina, do Caribe, da Europa, da Ásia, da África e da América do Norte a oportunidade única de constituir um bloco solidário condenando a atitude indigna dos Estados envolvidos nesta violação do direito internacional.

Trata-se também de uma oportunidade ideal de reforçar as mobilizações dos movimentos sociais que desejam construir um outro mundo, de fraternidade e de complementariedade. Cabe aos povos construí-lo.

Estamos certos que os povos do mundo, principalmente os da Europa, lamentam a agressão da qual nós fomos vítimas e que os afeta igualmente. E interpretamos a indignação deles como uma maneira indireta de nos pedirem as desculpas a que se ainda recusam os governos responsáveis. [4]

Notas:

[1] Dos quais são membros: Antigua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas e a Venezuela. 

[2] Nome dado pelas etnias Kunas do Panamá e da Colômbia ao continente americano antes da chegada de Cristóvão Colombo. Em 1992, esse nome foi escolhido pelas nações indígenas da América para designar o continente.

[3] Sobre estes eventos, consultar a página “Honduras” em nosso site e ler “Estado de Exceção no Equador” de Maurício Lemoine, La valise diplomatique, 1 de Outubro de 2010 e “O Paraguai tomado pela Oligarquia” de Gustavo Zaracho, La valise diplomatique, 19 de Julho de 2010; “Pequena desestabilização específica na Bolívia” de Hernando Calvo Ospina, Le Monde Diplomatique, Junho de 2010.

[4] Lisboa, Madrid, Paris e Roma fizeram um pedido de desculpas oficial tardio para La Paz .



Artigo de Evo Morales, no Le Monde Diplomatique | Tradução Cristiana Martin



A partir de: Esquerda.net